By Guilherme Rodrigues (Yerblues)
Cap. 3 - NY, Novembro/Dezembro de 1963 - O começo da febre
Novembro de 1963 começou como outro mês qualquer para mim. Muito trabalho, toneladas de estresse, grana pouca.
Minha rotina diária começava por volta das sete da matina, quando pegava o metrô rumo à 7 Central Park West, Manhattan, onde ficava a KRNY. No caminho, parava para comprar os jornais, as revistas de música, um capuccino gigante e os Preludins do Kat (aos quais ele chamava jujubas). Às nove da manhã, tínhamos uma reunião informal, víamos os noticiários na TV e discutíamos as novidades das paradas de sucesso, das revistas e dos jornais. Então eram definidas ordens sobre o que eu devia procurar e sobre o que deveria me inteirar naquele dia, após o que recebia passe livre pra perambular até as quatro da tarde, quando tinha de voltar à sede da Rádio pra nova reunião com Kat. Nesse meeting da tarde, eu contava a ele as novidades das ruas, passava um ou outro 45 novo, víamos o resumo das notícias vespertinas, e tínhamos uma prévia do que rolaria no Swingin' Evening, programa que Kat comandava todos os dias, das sete às onze da noite.
Era uma correria. E por falar em speed, Kat andava a mil, a cada dia alcançando novos níveis de exigência e stress. O cara voava baixo nos mikes, falando cada vez mais histericamente, sobre cada vez menos coisas interessantes.
Não era culpa dele. O mercado de teen idols e crooners atingira o ápice e era mesmo difícil arranjar alguma coisa interessante ou upbeat pra falar sobre os Pat Boones da vida. Yep, e isso ainda não era o pior. As Billboard Hot 100 do ano, até aquele novembro, mais pareciam um show de variedades do Ed Sullivan. Crooners, Girl Groups, Surf Music, Motown, mais Crooners, Teenyboppers, Doo Wop, Calipso, uma freira, crooners de novo, e até uma canção japonesa que atingiu o #1 por três semanas consecutivas (Sukiyaki, por Kyu Sakamoto, em junho).
Man, era tanta sacarina, que qualquer diabético era proibido de ouvir rádio... As melhores coisas nunca chegavam ao topo das paradas. Ficavam ali, rondando as top 10 ou top 20. Por exemplo, Sam Cooke, um de meus artistas prediletos, tinha lançado uma grande canção, Another Saturday Night, mas o máximo que conseguiu foi um #10 nas Billboard Hot 100 (em abril). Mas, hey, parafraseando aquele discurso do Kennedy, "não me pergunte o que as paradas de sucesso podiam fazer por Sam Cooke; me pergunte o que Sam Cooke podia fazer pelas paradas de sucesso"....
Anyway, naquele dia 4, eu estava a caminho da KRNY, lendo o
New York Times,
quando vi uma pequena nota na seção de notícias internacionais. Noticiava um enorme tumulto que aconteceu no aeroporto de Londres, no último dia de outubro. Uma multidão de jovens, notadamente garotas, invadira as dependências do aeroporto num estado de absoluto frenesi, aparentemente causado por um grupo de música pop, que voltava de uma turnê bem-sucedida pela Suécia. O nome do grupo: The Beatles.
Comentei na reunião matutina:
- Kat, te lembra dos Beatles? O NY Times deu uma nota sobre sua volta triunfal à Londres, após uma turnê bem-sucedida na Suécia.
- E daí? Os suecos só entendem de revistas masculinas... aliás, compre umas pra mim hoje...
End of story.
Mas poucos dias depois, eu lia a Time e a Newsweek, duas das revistas de maior prestígio e circulação no país, e as seções de música de ambas davam destaque para a nova mania que tomava conta da Inglaterra. Quem seriam?
Dessa vez, Kat não fez piada e pediu pra ler os artigos.
A Time era, como sempre, mais comedida:
"(...) The raucous, big-beat sound they achieve by electric amplification of all their instruments makes a Beatles performance slightly orgiastic. But the boys are the very spirit of of good clean fun. They look like shaggy Peter Pan, with their mushroom haircutd and high white shirt collars, and on stage they clown endlessly-twisting, cracking joke, gently laughing at the riotous response they get form their audiences. The precise nature of their charm remains mysterious even to their manager."
(tradução livre: "O estridente, rítmico som que eles alcançam pela amplificação de seus instrumentos faz uma apresentação dos Beatles parecer quase uma orgia. Mas o garotos são o puro espírito da boa e velha diversão. Eles parecem Peter Pans desgrenhados, com seus cabelos em forma de cogumelo, e no palco eles brincam o tempo todo, dançando e soltando piadas, rindo suavemente de toda a confusão que causam em suas audiências. A natureza precisa de seu charme permanece misteriosa até mesmo para seu empresário.")
Já o artigo da Newsweek era completamente off the mark. Assim dizia:
"Beatle music is high-pitched, loud beyound reason, and stupefyingly repetitive. Like rock & roll, to wich it is closely allied, it is even more effective to watch than to hear. They prance, skip, and turn in circles; (...) The style, centainly, is their own. 'They don't gyrate like Elvis', say one young girl. 'They stamp about and shake and, oh, dearie me, they just sent the joy out to you.'"
(tradução livre: "A música dos Beatles é estridente, barulhenta acima de qualquer sentido e estupidamente repetitiva. Como o rock & roll, ao qual é muito próxima, é ainda mais interessante de assistir do que de ouvir. Eles brincam, pulam e giram em círculos; (...) O estilo é todo deles, com certeza. 'Eles não ficam sacudindo como Elvis', diz uma jovem garota. 'Eles batem os pés e balançam naturalmente ao som de sua música, e, oh Deus, eles simplesmente passam uma energia contagiante.'")
- Huahua, esses caras da Newsweek simplesmente não conseguem enxergar um palmo diante do nariz. O gênero já existe há quase dez anos e eles ainda não entenderam que o rock é estridente, rude, barulhento acima de qualquer sentido e estupidamente repetitivo... Bom, esses 'besouros' estão saindo na Time, e isso é alguma coisa, mas ainda assim acho que eles não vão estourar por aqui. Do que adianta eles terem grandes singles? Os chefões locais não estão nem aí pra eles... Se nem a Capitol, que é da EMI, se interessou em lançar os caras por aqui...
Não dava pra tirar a razão do Kat. Mas eu também não podia ignorar que esses 'besouros' começaram a aparecer em jornais e revistas com frequência cada vez maior. Se bem que nunca tinha visto nada dos caras na TV, e isso era indicativo de que eles não eram grande coisa....
Só que em alguns dias isso também começaria a mudar. Estava assistindo ao Huntley-Brinkley Report, da NBC, pouco antes do Swingin' Evening ir ao ar, e uma chamada prendeu minha atenção: "A seguir, o novo fenômeno que vem agitando a Inglaterra." Sim, eram os Beatles, mas a reportagem foi tão mal-editada que quase não dava pra vê-los tocando. O que deu pra ver e ouvir nos três minutos que durou a reportagem, foi o frenesi das meninas durante o show dos caras, além da ironia e menosprezo do repórter ao descrever o som e o visual da Banda.
- Hmmm. I don't buy it... É Só uma matéria sobre as excentricidades das britânicas, Kat falou, tirando por menos.
Dois dias depois, naquela sexta-feira, 22 de novembro, Kat e eu estávamos em nosso meeting matutino, falando sobre Louie Louie, dos Kingsmen, um dos melhores singles dos últimos tempos, que vinha rondando as top 10, mas nunca chegava lá por causa dos Bobby Vintons que dominavam as paradas sem largar o osso um minuto sequer. Da TV, ao fundo, saía o som da vinheta do CBS Morning News que começava. Mike Wallace começou o programa falando da chegada do presidente Kennedy a Dallas no Texas, passando a agenda da visita e logo desfiando o rosário indistinto de notícias requentadas do dia anterior.
Eu e Kat, desinteressados daquilo, continuamos nosso blábláblá sobre o mercado musical saturado de glicose, até que em meio à balbúrdia da sala, ouvimos um som familiar, que ambos conhecíamos. Era
She Loves You. Calamos a boca e prestamos atenção na TV. Alex Kendrik, correspondente da CBS em Londres, começou sua
matéria:
"(...) This is from Beatleland, antigamente conhecida como Inglaterra, ground zero da epidemia chamada Beatlemania que se espalhou entre os adolescentes, especialmente entre as meninas. (...) John, Paul George e Ringo, estes quatro jovens de Liverpool, com suas perucas em forma de cogumelo, são a última sensação musical entre os britânicos, e tamanha é a comoção e idolatria que causam nos jovens que os assistem, que já estão sendo tratados pela imprensa britânica como um fenômeno sociológico."
Kendrik então contou as peripécias que a equipe da banda tinha de fazer pra colocar os rapazes no palco, e as mil e uma estratégias que tinha de bolar para tirá-los de lá após os shows, os quais estavam sempre apinhados de jovens como que alucinadas por alguma espécie de hipnotismo coletivo, gritando, desmaiando, correndo em manadas atrás dos Beatles.
A melhor parte veio logo depois. Uma pequena entrevista, realizada por Josh Darsa com os rapazes, direto de seus camarins após a apresentação em Bornemouth, UK:
"Darsa: o que acontece com vocês que gera todo esse sucesso de público, especialmente entre as garotas?
Paul: Eu não faço a menor idéia. Deve ser, como vocês da imprensa dizem, os cabelos. A gente nunca pensou nisso como um diferencial, mas se todo mundo diz que é...
Darsa: O que é o Mersey Sound? E em que é diferente do rock e do pop britânicos de Londres e de outras partes do UK?
George: Não é nada tão diferente, pra falar a verdade. Apenas aconteceu que apareceu um monte de bandas em Liverpool fazendo um som que a maioria das pessoas achou mais próximo do rock & roll original do que as coisas que vinham tocando no rádio nos últimos anos, então eles chamaram isso de som de Liverpool...
Darsa: Vocês tem medo de que o seu público eventualmente fique cansado de vocês e procurem a próxima novidade, ou um novo favorito?
John: Bom, eles vão fazer isso de qualquer jeito... Depende mais de quando eles vão fazer isso, não é mesmo?
Paul: É estupidez se preocupar com coisas desse tipo..
George: Não é algo que me faça perder o sono. Você perderia?
Paul: Não, não é mesmo? Pode acontecer amanhã, pode acontecer em uns dez anos. A gente só pode esperar por uma boa caminhada..."
Depois, Kendrik retomou sua narração, enquanto a reportagem mostrava cenas de outros shows da banda e de imagens entrecortadas de centenas de jovens em lojas de discos comprando produtos dos Beatles:
"(...) Os Beatles, que começaram suas apresentações em clubes nas docas de Liverpool, estão agora faturando em média cinco mil libras por semana, em shows itinerantes por todo o Reino Unido. Eles já venderam algo na casa dos dois milhões e meio de discos. Eles lideram todas as paradas na Inglaterra desde o início deste ano. Eles inspiraram a moda do corte sheepdog. Os jovens os idolatram. Os pais destes mesmos jovens os detestam. Mas os sociólogos britânicos dizem que os Beatles tem um significado muito maior que o de simples objetos de adoração adolescente. Eles seriam a autêntica voz do proletariado. Eles seriam o autêntico coração dos jovens britânicos revoltados contra o culto americano a cantores pop, como Elvis e sua longa lista de imitadores britânicos. Eles seriam os autênticos anti-heróis do século vinte, fazendo e cantando uma não-música, usando não-cortes de cabelo, e dando respostas não-respostas a seus entrevistadores. Enquanto isso, yeah, yeah, yeah, as fãs continuam aumentando e o dinheiro continua entrando, aos borbotões, em seus bolsos. Eu sou Alexander Kendrik, direto da Beatlelândia..."
Kat não se continha de excitação:
- Wow, sensacional, você viu isso, Mitch??? Eu sabia, meu faro não me enganou sobre esses caras... corre lá no depósito e pega os 45 deles que, agora, acho que o bicho vai pegar...
Corri até o depósito da rádio, um contíguo de 4X4 metros abarrotado de discos, e demorei uma meia hora pra achar os singles. Onde estão eles???? Yeah, aqui estão... Voltei com os 45’s debaixo do braço e um riso triunfante nos lábios. Alegria que logo se desvaneceu quando vi a cara de choro de todo mundo que passava por mim... Quando achei Kat, ele também estava chorando.
- O que houve, Kat???
Ele não conseguiu falar nada e só apontou pra TV, que estava muda, com o logo CBS News Bulletin estampando a tela. Assim que fixei a vista no aparelho, como num passe de mágica, apareceu o Walter Cronkite e disse:
- “Acabamos de ter a confirmação de nosso correspondente Dan Rather, em Dallas, Texas. O presidente Kennedy não resistiu aos ferimentos e teve morte cerebral declarada pelos médicos às 13:00.”
***
Naquele 10 de novembro, um desconhecido Brian Epstein desembarcava em Nova Iorque para alguns encontros de negócios. Sua agenda incluía Brown Meggs, um dos diretores da costa leste da Capitol americana, Gloria Stavers, editora da poderosa 16 Magazine, Mark Rutford, representante legal da William Morris Agency, a maior agência de talentos de Nova Iorque, além de representantes da Cash Box, Billboard e Atlantic Records.
O encontro mais importante da viagem, contudo, se deu no dia seguinte, 11 de novembro de 1963. Naquela segunda-feira, Brian Epstein abria as portas de sua suíte no Hotel Delmonico para Ed Sullivan. No encontro, ficaram acertadas duas aparições dos Beatles no Ed Sullivan Show dos dias 9 e 16 de fevereiro de 1964. No dia seguinte, Brian, Ed e seu genro, Bob Precht, um dos produtores do programa, se encontraram novamente, para formalizar o negócio. A negociação final incluiu uma terceira apresentação dos rapazes - que ficaria gravada para transmissão posterior, com data a ser definida pela produção do programa. As três apresentações dos britânicos custaram a Ed a bagatela de dez mil dólares (mais passagens, hospedagem e transporte de equipamentos), preço que Sullivan pagava por apenas uma apresentação das estrelas americanas em seu programa. Como era costume de Brian à época, tudo foi formalizado com um aperto de mãos.
***
As semanas que se sucederam foram duras para nós, americanos. Só se falava no assassinato do presidente Kennedy; na captura do suposto assassino, Lee Oswald; no assassinato em rede nacional do Lee Oswald pelo Jack Ruby, e por aí vai. Foi um massacre da mídia sobre um massacre real. Eu pensava: o homem está morto, raios, de que adianta ficar nesse luto infindável, nesse rame-rame sobre o ângulo A ou o ângulo B do atirador, ou dos atiradores? Mas o que eu pensava não importava. A violência das imagens e as teorias da conspiração dominavam a imaginação popular, e as TV’s, jornais e revistas refletiam essa fixação no assunto, vinte e quatro horas por dia. Well, pelo menos essa era a sensação que eu tinha. Sensação que se agravava por eu trabalhar na KRNY, originalmente uma rádio de notícias que só há dez anos passara a transmitir música numa base regular em sua programação. Pra falar a verdade, a gente, que era do departamento de música da rádio, se sentia quase constrangido por ter de transmitir música num momento tão trágico de nossa História. Todos, menos Kat, que dizia:
- Ânimo, pessoal, este país nunca precisou tanto de algo pra levantar a moral, e nós vamos fazer isso!
Num daqueles dias eu estava folheando a New York Times Magazine a esmo e vi uma reportagem de três páginas entitulada “Ingleses sucumbem à Beatlemania”. Era a primeira matéria séria que eu lia sobre os Beatles numa revista americana. Mas eu andava tão taciturno naqueles dias que nem me dei ao trabalho de comentar a matéria com o Kat. Além do mais, ele iria pra Miami, em férias, naquele princípio de dezembro. Eu ficaria de stand-by, auxiliando o sujeito que o substituiria, um cara já entrado nos seus 50’s, chamado Jimmie Dulles, um jazzmaníaco, sem nenhum feeling pela música pop. Oh, man, eu precisaria de um tremendo presente de natal pra ficar minimamente animado.
E o presente de natal chegou naquele 10 de dezembro. Eu assistia ao CBS Evening News, pouco antes do Swingin’ Evening ir ao ar, quando Walter Cronkite, a voz da nação, chamou a matéria "A nova febre que vem da Inglaterra: a Beatlemania". A reportagem era exatamente igual àquela exibida no fatídico 22 de novembro passado, mas o endosso do Cronkite aos Beatles dava uma nova dimensão ao assunto na América.
Percebi isso na hora em que assistia e corri ao depósito, recolhendo novamente os singles dos britânicos, deixando à disposição do Dulles. Conforme eu previra, o aval do Cronkite aos Beatles em seu programa, faria milagres. Minutos depois de terminado o noticiário, começaram a tocar os telefones da KRNY, todos de jovens pedindo que a rádio tocasse alguma música dos Beatles. Dulles colocou She Loves You e imediatamente a audiência respondeu com mais telefonemas pedindo mais canções daqueles britânicos.
No dia seguinte, os Beatles eram o assunto nas ruas. Os adultos ridicularizavam aqueles cabeludos yeah, yeah, yeah que tinham aparecido no Cronkite. Mas os jovens, especialmente as jovens, continuavam telefonando cada vez mais pra KRNY, pedindo músicas dos perucas, apelido pelo qual passamos a chamar os Beatles.
Na noite daquele mesmo 11 de dezembro, chegando em casa, topei com Beth Reeves, minha vizinha do 404 que também chegava àquela hora, ela era a minha fonte no aeroporto Idlewild, e fazia a rota NY-Londres regularmente. Fora ela quem me arrumara um monte de revistas e jornais da Inglaterra no mês passado. Perguntei:
- Beth, você deve conhecer os Beatles. Você não saberia se eles lançaram algum novo single lá pela Inglaterra, não é?
- Mitch, mesmo eu que não sou adepta a estes modismos tenho de dizer, esses Beatles são sensacionais. Em Londres só se ouve uma canção chamada I Want To Hold Your Hand. Acho que é o último lançamento deles.
- Você traria esse single pra mim, por favor? Pago bem pelo material.
- Sem problemas. Mas só voltarei de Londres na semana que vem. Dá pra esperar?
- Não tenho opção.
Três ou quatro dias depois, saiu na Billboard que a Capitol tinha adquirido os direitos para todos os futuros lançamentos dos Beatles nos Estados Unidos. O primeiro disco a ser lançado pelo selo seria o single I Want To Hold Your Hand, previsto para chegar às lojas em 14 ou 15 de janeiro de 1964. Opa, Capitol, os chefões da distribuição nos USA, pensei.
Mais importante: no dia 14 de dezembro, a CBS emitiu nota informando que os Beatles apareceriam no Ed Sullivan Show em 9 e 16 de fevereiro de 1964.
Aquela nota teve o efeito de uma bala zunindo em minhas orelhas.. Man, it’s all happening... Eu tinha de falar sobre aquilo tudo com o Kat. A intuição dele sobre esses caras estava certa. Descolei o telefone de onde ele estava em Miami:
- Kat, meu velho, onde anda você? Não tem visto televisão esses dias?
- Pombas, estou de férias e você me liga pra fazer uma pergunta cretina dessas?
- Não é isso, cara. Você não tá entendendo. São os Beatles! Eles estão vindo pra América!
- Ah, tá bom, lá vem você falando nesses ‘besouros’ de novo. Faz o seguinte, arrume um dedetizador!
- Kat, não é hora pra piada. A Capitol assinou com os caras e eles vão se apresentar no Ed Sullivan Show em fevereiro do ano que vem. Já tá tudo acertado.
- O quê???? Capitol? Ed Sullivan?? Mas que diabos... amanhã eu tô aí!
Dito e feito, no dia seguinte, Kat já tinha reassumido seu posto na KRNY, devidamente inteirado de toda informação que eu coletara em sua ausência. Mas eu não lhe contei que estava pra receber o mais novo single da Banda. Ele ficaria insuportável.
- Mitch, eu vou procurar a Gloria Stavers, da 16 Magazine, ela me deve uns favores pessoais. Se há alguém que sabe o que vai acontecer em 1964, esse alguém é a Gloria.
Saí às ruas e quando voltei, Kat estava mais eufórico que nunca:
- A Gloria me disse que os caras vão acontecer big time. E não é só isso, depois de uma leve chantagem minha, adivinhe? Ela me deu simplesmente o contato do empresário deles, em Londres, um tal de Brian Epstein, can you believe it????
Minha vizinha Beth voltou de Londres no dia 18 de dezembro e, como eu esperava, colocou nas minhas mãos o novo 45 dos britânicos. Uau, esse material é quente. Corri como o vento e cheguei suando em bicas, esbaforido, à KRNY na manhã daquele 19 de dezembro.
- Kat, pode preparar a fantasia, que você vai ser o Papai Noel de Nova Iorque.
- Que papo besta é esse, rapaz?
- Vai te preparando que eu tô aqui com o maior presente de natal que a gente poderia dar pra essa cidade. Aqui, este é o novo single dos Beatles, que a Capitol só vai lançar lá pro meio de janeiro. Vamos escutar isso logo. Até onde eu sei, nenhum DJ em Nova Iorque tem.
- What???? Seu canalha!!! Me dá isso aqui, vamos lá pra cabina... Mas esses ingleses são uns sovinas mesmo, olha o visual desse single...
- Not so fast, Kat. Escute a canção...
Colocamos o single pra tocar. Na hora que ouvi, senti que era um #1. Nunca tinha ouvido nada nem perto daquilo. Aqueles riffs poderosos na abertura, aquelas vozes quase distorcendo os VU’s, aquelas palmas, aqueles tons rattlesnakes da guitarra-base. Tudo era original naquilo... E a letra tinha uma ingenuidade cativante, à Buddy Holly, mas se a gente prestasse atenção, era pura sugestão, deixando ao ouvinte a possibilidade de inferir o que quisesse (e se quisesse), como nos melhores momentos de Chuck Berry. Man, aquilo era Rock, mas um rock diferente, muito mais envenenado no beat e, principalmente, na produção. Enfim, a canção era dinamite, como a gente falava na gíria radiofônica, um verdadeiro chute no traseiro de todos os Fabians que a gente tinha sido obrigado a engolir nos últimos quatro ou cinco anos.
Quando terminamos de ouvir o single, Kat apenas ficou me olhando, incapaz de falar qualquer coisa. Ele se levantou da cadeira e saiu da sala, mudo. Fui atrás dele:
- O que foi ? Você não gostou do single? Você tá maluco? É a coisa mais venenosa que a gente escuta desde Heartbreak Hotel e você não gostou??? Qual é a sua, Kat?
Kat não falou comigo durante todo o resto do dia. Mas gostou do que ouviu, tanto que colocou I Want To Hold Your Hand na grade do Swingin’ Evening naquela mesma noite. Logo antes do programa começar, ele mandou me chamar à cabina de transmissão:
- Venha cá, moleque atrevido, sente-se aqui, você vai ter a honra de introduzir a canção para os ouvintes, huauhauhauhauha....
- What???? Er... Não, eu não posso, não sei nada disso, não tô preparado pra isso...
- Deixa de besteira, rapaz, você é o cara mais preparado pra isso que já conheci. Vou te apresentar e então você introduz a canção. Só isso, sem dramas, pô. Afinal, você não queria ser um DJ em NY???
Não deu nem tempo de pensar, do console de transmissão partiu o aviso: no ar em dois minutos, Kat.
Eu introduzindo um single sensacional desses, pensei....
- No ar em cinco, quatro, três, dois....
- Yeah, baby, here’s what’s happening, a gente está aqui com Robert Mitchell Imperioli, de Flushing, Queens, e ele terá a honra de apresentar a vocês um negócio quentíssimo que acaba de chegar da Inglaterra, uma exclusividade aqui da KRNY. Então, Mitch, o microfone do Swingin’ Evening é seu.
Engatei cinco segundos de mudez, uma eternidade diante da latinha, Kat me fuzilando com o olhar... finalmente, saiu:
- Er... senhoras e senhores, pela primeira vez em Nova Iorque, aqui estão os Beatles cantando seu mais novo single, I Want To Hold Your Hand....
E foi como lançar um tijolo numa vidraça. Após a primeira execução, a canção simplesmente explodiu. Os telefones da KRNY não paravam mais de tocar, os ouvintes só queriam saber daquela música. Pra falar a verdade, a canção bagunçou todo o esquema de programação da Rádio, que teve de ser refeito pra acomodar cada vez mais execuções de I Want To Hold Your Hand...
Naquela mesma semana, uma coisa estranha aconteceu: cartas começaram a chegar à KRNY, pedindo informações sobre os Beatles. Além disso, adolescentes começaram a freqüentar as dependências da KRNY por causa daquela canção, e isso acabou tumultuando de tal forma o trabalho, que o Diretor-geral da Rádio foi obrigado a contratar seguranças para impedi-las de entrarem.
Vendo aquilo tudo, eu pensava: uau, pode uma simples canção fazer um negócio desses? Mas elas não queriam saber apenas da canção. As cartas que recebíamos davam conta de que elas queriam saber sobre os Beatles. O que eles vestiam, o que eles pensavam, o que eles comiam. Eu não sabia o que tinha mudado no gosto daquelas jovens nos dois meses que se passaram desde que tentamos emplacar She Loves You em vão, mas para mim era evidente que estávamos presenciando os primeiros sinais da beatlemania em solo nova-iorquino.
- Mitch, vou tentar falar com esse Brian Epstein. A gente precisa saber mais desses rapazes pra informar aos ouvintes. Não quero ficar passando informação requentada ou imprecisa.
Logo, outra coisa altamente incomum aconteceu: Kat passou a receber telefonemas de seus colegas DJ’s da WABC, da WMCA e das demais rádios da área de NY, todos querendo saber de onde Kat tinha tirado aquele single sensacional. Numa época de competitividade quase canibalesca entre as Rádios e seus DJ's, Kat não foi medíocre, gravou em rolo a canção e distribuiu para todos eles, dizendo:
- Esses caras são o que vai acontecer em 1964.
Mas nem precisava falar nada, a canção já estava estourada na cidade e arredores.
Sem falar nada com Kat, também fiz uma cópia do single e mandei pra nosso velho amigo Mick Diondi, da KRLA de Los Angeles. Junto da fita, foi uma nota: “Mick, escute isso, ouça o futuro! Falta pouco pra ser #1 aqui na Big Apple. Abraços. Mitch, your favorite NYDJ.”
Dois dias depois, Kat foi chamado à sala da direção.
O Sr. Kauffman, diretor geral da Rádio, o aguardava segurando o telefone nas mãos:
- Kat, o Sr. Alex Chilton*, advogado da Capitol Records e dos Beatles aqui na América quer falar com você.
- Ahan... Alô, sr. Chilton, Kat falando, como vai? Estamos trabalhando forte com I Want To Hold Your Hand aqui em NY, mas precisamos de mais informações...
Kat foi bruscamente interrompido por Chilton:
- Sr. Kat, TIRE ESSA CANÇÃO DO AR IMEDIATAMENTE E NÃO VEICULE MAIS ESSE SINGLE ATÉ SEGUNDA ORDEM, ENTENDEU???