segunda-feira, 13 de julho de 2009

A lenda do anjo que virou pó...

Em meados dos anos 50 a country music havia alcançado tamanho ponto de diluição, que as franjinhas da camisa que o intérprete vestia ou o couro da bota que ele calçava importavam mais que a música que cantava ou os sentimentos que por meio dela expressava... veio então, inevitavelmente, o movimento de volta às raízes, encabeçado por Merle Haggard e Buck Owens, dentre outros nomes. Esses caras foram chamados primeiro de caipiras de Bakersfield, depois de rebeldes, mas nada mais eram do que compositores que não abriam concessões às super-produções que enfeitavam temas e letras profundas como um pires...

(à esquerda, Merle Haggard. Olha a pinta do sujeito: não dava pro cara cantar coisa tra-lá-lá mesmo)


Bakersfield era música que falava de gente e para gente - não para gente estúpida necessariamente – e a sonoridade básica residia em instrumentação elétrica, um sacrilégio para o gênero country de então, eminentemente acústico... parece um tanto genérico, mas era isso mesmo, uma reação à estabelecida e corriqueira obtusidade que reinava na fórmula montada pelos capos hit-makers de Grand Ole Opry. Renovaram um gênero que parecia fadado ao tédio eterno e estreitaram a tênue linha que separava a country music da dita música popular de sua época (Hank Williams e George Jones tinham sido os pioneiros na popularização massiva da country music), mas permaneceriam restritos aos limites da Nashville America.

(à direita, o auditório de onde era transmitido o mítico Grand Ole Opry show, diretamente da meca da country musica, Nashville)

Pelo fim da década de 50, entretanto, não havia mais lugar para discussões quanto à estupidez da temática veiculada nos hits pré-fabricados de Nashville... o Rock e o R&B haviam passado por cima de tudo com a delicadeza de um rolo compressor... da metade dos anos 60 em diante, a indústria da juventude tomava de vez os controles e ditava que o que era “moda” em um mês, no outro era matéria de memorabília... tudo era muito hype, tudo se esgotava muito rapidamente, tudo era muito tudo ao mesmo tempo agora, para usar uma frase da época... mas existiam uns baby boomers malucos que além de gostarem do rock e do soul dominantes, curtiam também, vejam só, country music, e viam possibilidades insuspeitas e irrealizadas no trabalho dos tais caipiras de Bakersfield...

Um desses filhos da "revolução dos eletrodomésticos", um alucinado de nome Gram Parsons (nascido em 1946 e criado na Flórida), tinha especial talento e vivia perseguindo uma tal de cósmica música americana, um lugar que, segundo ele, era o seu mundo real... o que acabou por encontrar, trocando em miúdos, foi o country-rock... Parsons praticamente forjou e definiu os primeiros contornos do estilo por meio de sua obra com a International Submarine Band, que durou de 1966 até fins de 1967 e resultou no disco Safe at Home (lançado em 1968 quando a Banda já não mais existia)... o disco e os shows com a ISB passaram longe de interessar o público majoritário da época, mas foram o laboratório onde Parsons desenvolveu composição, instrumentação, enfim, um perfil estilístico próprio...


(à esquerda, Gram saindo da puberdade, prestes a entrar pra história do rock)

Em fins de 1967, Gram conhece Chris Hillman em Sin City, ou Los Angeles para os mais íntimos, e os dois se entendem imediatamente... Hillman o recomenda a Roger McGuinn, eterno e inquestionável líder dos Byrds, que então fazia reformulação da Banda... convidado, Parsons topou se juntar aos passarynhos e teve notável proeminência na consecução daquele que muitos dizem ser o grande momento da Banda, "Sweetheart of the Rodeo”, que saiu em fins de 1968...

A crítica colocou o disco nas alturas, considerando-o “o primeiro momento de afirmação do country-rock” (vide Rolling Stone), mas Parsons não estava nem aí para as loas da mídia... aliás, ele tinha acessos de fúria quando falavam que sua música era country-rock... Parsons não era um rockstarzinho temperamental, nem se achava gênio, apenas não levava a sério as opiniões de uma imprensa que tinha mania de achar rótulos para tudo e todos.... as manias da imprensa já estavam estabelecidas há tempos, e Parsons sabia que não seria ele quem modificaria o cenário, mas já que os rótulos eram inevitáveis, queria pelo menos que sua arte tivesse um de caráter mais universal, mais abrangente, daí falar tanto na tal “cósmica música americana”... é claro que o título não pegou e Parsons teve que engolir o country-rock mesmo (e cá entre nós, country-rock é bem menos pior e datado que “cósmica música americana”, né não?)... (à direita, Parsons com os Byrds, numa rara sessão de divulgação)

Rótulos à parte, Sweetheart of the Rodeo foi o disco que deu novo rumo estilístico para os futuros trabalhos dos Byrds. Nos discos seguintes, a country-music seria o elemento dominante na sonoridade, deixando a psicodelia em segundo plano... paradoxalmente, por essas épocas “caipira” andava sendo sinônimo de “psicodélico”... Woodstock já vinha por aí, seria numa fazenda nos fundilhos de Nova York, e tornaria mais ou menos meio milhão de cool citizens em caipiras honorários do dia para a noite.... Peter Fonda e Dennis Hopper montariam em suas bikes e esfumaçariam de vez os limites entre o urbano e o rural na corporate America, onde tudo e todos eram caipiras e paranóicos (no filme Easy Rider, 1969)... Numa visão mais ampla, Sweetheart of the Rodeo foi estopim para o fenômeno country-rock que dominaria as ondas médias e as freqüências moduladas de boa parte das rádios do ocidente ao longo dos ‘70s...

Mesmo tendo sido a grande estrela do disco, demonstrando notável maturação artística, nem tudo foi legal para Parsons no período em que ficou com os Byrds... uma lamentável veleidade jurídica fez com que seus vocais fossem praticamente limados do disco... Gram ainda era contratualmente atrelado ao selo responsável pela veiculação do trabalho da International Submarine Band, e assim sendo não podia ter participação evidente em projetos de outras gravadoras... na verdade ele saiu da ISB sem fazer nenhum tipo de comunicação do fato aos demais membros da Banda, ou mesmo ao empresário Lee Hazlewood, que dirá falar que pretendia juntar-se aos Byrds... esses detalhes não tinham vez no mundo do indisciplinado Parsons... e quer saber? Danem-se os passarynhos também... nos poucos meses em que ficou com a Banda, Gram percebeu que não tinha saco para o contraditório idealismo egotrip de Roger McGuinn que ia cantar The times they are a-changin´, cobrando os tubos, na África do Sul, então grande bastião do apartheid...

Parsons resolveu as pendengas jurídicas com seu antigo empresário e ficou livre para achar seu lugar, onde quer que isso fosse... tomou Chris Hillman, que já tinha voado dos Byrds, convocou o velho conhecido Sneaky Pete Kleinow, guitarrista especialista no pedal steel (Pete vinham engendrando um som que equilibrava o lamento do country com a levada psicodélica e mais agressiva do rock), chamou para o baixo Chris Ethridge, outro velho camarada da International Submarine Band e se embrenharam deserto adentro, carregando na sacola melodias inesquecíveis, letras ainda inacabadas e outras cositas más... lá, na fértil aridez do Mojave, compuseram outras tantas pérolas, beberam, piraram, e ocasionalmente deram polimento em algumas obras-primas... (puro mito: segundo Hillman, Parsons e ele compuseram a maior parte das canções do primeiro disco numa casa em San Fernando Valley, Reseda, bem no meio de LA, e foi um período de trabalho saudável, sem bagulho pesado no meio). Na volta, Hillman convenceu algum ensandecido executivo da A&M Records de que a "cósmica música americana" era viável e vendável e Parsons sacou do bolso um nome absolutamente lógico para sua Banda, The Flying Burrito Brothers, além de um título bastante atrativo para a cena pop da época, "The Gilded Palace of Sin".

Se em "Sweetheart of the Rodeo", McGuinn e Gram jogaram cinco medidas de country para cada dez de rock, em "The Gilded Palace of Sin", lançado em 1969, a medida do country seria a ausência de medidas, ou o ponto em que rock e country se tornam indistintos, como queira... que tal um tempero R&B? Gram era do Sul, hell, por que não? Joga soul nisso aí...

Dos primeiros stomps de “Christine’s Tune (a.k.a Devil in disguize)”, passando pelo conto de pecado, redenção e destruição iconoclástica de “Sin City”, pelas covers de “Dark end of the street”, “Do right woman” (não superou a versão de Aretha, ninguém na Terra poderia, mas fez com que a música tivesse uma outra dimensão, como se fizesse parte de uma realidade paralela em que não existisse a versão de Aretha), fechando com a linda balada “Hot Burritos #1” e sua contra-parte “Hot Burritos #2”, o disco é emoção pura... uma reafirmação das emoções e dos valores lá do trabalho dos caipiras de Bakersfield sim, mas sob a ótica cortante do rock, que com um gume deixava todas as veias abertas e com o outro suturava tudo junto, num amálgama indistinguível, caleidoscópico e, para usar um adjetivo bem original, “psicodélico” até a última gota de refresco elétrico...

Em Gilded Palace of Sin o talento indisciplinado de Parsons irrompe com a mesma violência imagética de um daqueles dinners vermelhos em contraste com o vazio do Mojave... Acabado "Gilded...", Parsons perde as divisas entre o real e o sonho... Desde tempos idos, Parsons soubera que o mundo onde vivia era apenas uma sombra do mundo real... Para chegar ao "seu" mundo real tinha de sonhar, e quando estava no seu mundo real tudo parecia flutuar ou dançar... poucos pisariam em lugares tão distantes quanto Parsons, que sempre dizia “ter de se perder para se encontrar”... no meio do nada Parsons se achou e se perdeu de novo... durante sua breve e louca sanidade, construiu "The Gilded Palace of Sin", um templo em que o nada era tudo e tudo era música e música dizia boas coisas à alma, e viu que isso era bom ... inquieto, terminado o "Palácio", Parsons saiu dali e ganhou o deserto... precisava voltar... para onde? só havia uma estrada de volta à Sin City... "a Interstate 15, uma linha reta que cruza Baker, Barstow e Berdou e se perde na frenética Hollywood Freeway... segurança, obscuridade, só mais um doido no reino dos doidos”...

O cara era um pirado profissional, já deu pra perceber... e o problema com esses caras é que eles sempre vivem como se não houvesse amanhã (talvez seja exatamente por isso que sua arte seja tão genuína, vai saber). E também tem o seguinte, ninguém pensa, ao vinte e uns, que vai bater as botas, mesmo vivendo no meio de um furacão... O cara já tinha passado pertinho da caveira, quando se esborrachou big time num acidente com sua Harley-Davidson (na companhia de Papa John Phillips) e ficou quase um mês no hospital em estado grave, conseguindo se recuperar sabe lá Deus como... Mas daí, o cara vai e tem o flerte fatal... morre no deserto, é levado pros legistas da vida, e depois dos exames de praxe, seu corpo é confiado a dois doidões de quatro costados que andavam com ele... e o que os caras fazem? tomam Gram, levam de volta ao deserto, sapecam fogo no cadáver do cara (uns dizem que numa espécie de ritual) e provavelmente têm mais uma viagem... simplismo ou não, essa parte final da estória é mais um dos mitos do rock, ou seja, ninguém sabe o que realmente aconteceu com Gram, como ele morreu de fato (os laudos da autópsia atestam que foi uma overdose), por que o socorro não lhe foi prestado em tempo (as figuras que estavam com Parsons na hora fatal contam versões conflitantes) ou por que diabos esse alucinados tocaram fogo no sujeito (Phil Kauffman, um dos autores da façanha, diz que tinha feito um pacto com Parsons de que, quem morresse primeiro seria levado a Joshua Tree, onde teria o corpo incinerado...). O fato é que, queiram ou não, é sabido que o lugar preferido de Gram era o deserto do Mojave..... se Gram era o God’s own Singer, então a citação bíblica “do pó ao pó retornarás” foi literalmente cumprida...

Antes de morrer, Gram ainda fez um disco com os Burrito Brothers ("Burrito Deluxe", 1970), conseguiu realizar dois discos solos (os antológicos "G.P.", 1972, e "Grievous Angel", 1973), e fez uma panelada de shows, mas em nenhum outro momento de sua curta carreira ele imprimiu tanta substância quanto no ornamento do seu Palácio Dourado, que aliás continua lá, no Mojave, iluminado e iluminando com o brilho inextinguível do anjo que virou pó...

Pouco tempo depois da morte de Gram, umas “águias” tiveram um leve vislumbre do velho Palácio e construíram algo que achavam parecido, puseram-lhe o nome Hotel California e faturaram bilhões, diluindo, dilapidando e quase soterrando a miragem original numa tempestade de granola-rock... muitos outros tempos depois, uns caras menos ambiciosos empreenderam uma busca pelo Palácio original e trouxeram de lá um tal de "alternative country"... não faturaram milhões, mas deram uma boa engrossada no caldo também conhecido como música dos anos 90...

O SDN traz agora uma antologia que reúne boa parte da produção de Parsons com os Flying Burrito Brothers. Este post é a primeira parte de uma série dedicada ao Grievous Angel...



Gram Parsons & The Flying Burrito Bros - Anthology (1969-1972)



01 - Christine's Tune (Aka Devil In Disguise) 03:01
02 - Sin City. 04:07
03 - Do Right Woman 03:56
04 - Dark End Of The Street 03:48
05 - My Uncle 02:35
06 - Wheels 03:01
07 - Juanita 02:28
08 - Hot Burrito #1 03:36
09 - Hot Burrito #2 03:15
10 - Do You Know How It Feels 02:06
11 - Hippie Boy 04:54
12 - The Train Song 03:03
13 - Lazy Days 02:57
14 - Image Of Me 03:18
15 - High Fashion Queen 02:05
16 - If You Gotta Go 01:48
17 - Man In The Fog 02:29
18 - Farther Along 03:59
19 - Older Guys 02:28
20 - Cody, Cody 02:44
21 - God's Own Singer 02:04
22 - Down In The Churchyard 02:19
23 - Wild Horses 06:20
24 - Six Days On The Road 02:55
25 - Close Up The Honky-Tonks 02:17
26 - Break My Mind 02:20
27 - Dim Lights 02:53
28 - Sing Me Back Home 03:48
29 - Tonight The Bottle Let Me Down 02:52
30 - To Love Somebody 03:18


Disco 1


Disco 2

Nenhum comentário: